A onda de adesão ao ERP é algo que acontece do topo da cadeia empresarial para baixo, não apenas no Brasil como em todo o mundo. Primeiro as grandes empresas foram o campo de batalha dos fornecedores de ERP, e em seguida, as empresas de médio e pequeno porte.
No tempo onde o alvo eram apenas as grandes empresas, o produto e todo o conceito em volta eram revolucionários. Criou-se um mercado com força e visão positiva, atuando em algo vital: ferramentas padronizadas para a gestão e crescimento das empresas. Entretanto, o tempo passou, a causa envelheceu e se perdeu, e atualmente o consumo desse produto com prazo de validade expirado vem causando vários sintomas nos empresários menores, entre eles a sensação de software ruins e inadequados, que são desenvolvidos sem a visão do usuário, suporte péssimo, projetos feitos para dar errado e que finalmente são vendidos ao cliente de uma maneira, no mínimo, desonesta.
Este é o quinto capítulo da saga de desconstrução de um mercado que perdeu muito de seus princípios. Acho que esse tende a ser o artigo mais “forte” da série, então antes de começar vamos àquele anúncio sempre necessário: eu sei que sempre há exceções para qualquer regra. Sei que o que escrevo aqui não vale para todos os casos (só para quase todos). Mesmo estando ciente de que posso ferir algum improvável inocente, a prioridade é a objetividade, sem perder tempo sendo politicamente correto.
Isso dito, vamos que vamos!
“Estou tentando implantar esse sistema há mais de um ano, já gastei três vezes mais dinheiro do que previa e nem sequer consigo emitir uma maldita nota fiscal”, reclamam desiludidos milhares de clientes dos velhos ERPs, de norte a sul. Mas esse pesadelo iniciou-se com um sonho. Um sonho de uma empresa melhor, mais organizada, ágil e eficiente. Um sonho que foi um dia vendido a esse cliente, mas ao longo do caminho outra realidade começou a aparecer.
“Se alguma coisa se deteriorou no mundo do ERP nesta última década mais do que o produto e o atendimento, essa coisa foi com certeza o processo de venda. “
Então vamos tentar desvendar o que gerou essa realidade tão diferente do sonho, sua causa raiz e seus atores principais, pois ter uma visão crítica bem precisa desse cenário com certeza nos ajudará a não cometer os mesmos erros na nova geração de sistemas de gestão que está chegando. Precisamos principalmente deixar claro como atualmente se joga o jogo, pois se alguma coisa se deteriorou no mundo do ERP nesta última década mais do que o produto e o atendimento, essa coisa foi com certeza o processo de venda.
O problema ao redor da venda do ERP começa com um fenômeno natural: o esgotamento do mercado alvo. Isso porque dos mais de 15 milhões de CNPJs existentes no Brasil, apenas 50 mil são empresas médias e só 500 são grandes empresas. Obviamente esses números variam conforme os parâmetros de porte, mas isso não importa, pois de qualquer forma a quantidade de empresas pequenas que sobe para a categoria de média faz o bolo crescer perto de 1% ao ano. Porém 1% é obviamente muito pouco para a saciar a necessidade de crescimento de qualquer empresa de tecnologia.
Como consequência de um mercado saturado, sobraram poucas opções de crescimento para essas empresas velhas e tradicionais de ERP, todas elas válidas do ponto de vista de negócio mas péssimas do ponto de vista dos clientes, vamos ver:
Opção 1 – Comprar outras empresas de ERP concorrentes, o que resulta em dois produtos diferentes, duas equipes distintas, antes concorrentes, trabalhando embaixo do mesmo teto – é fácil imaginar que a guerra não termina de fato e normalmente o produto e equipe da empresa compradora vence. Quem perde é o cliente de ambos, obviamente, porém mais ainda o cliente do sistema proveniente da empresa comprada, que enfrenta cada vez mais dificuldades de atualização. Concluindo, comprar empresas concorrentes funciona apenas para o fornecedor de ERP crescer em volume e faturamento, fato constatado.
Opção 2 – Buscar outros mercados ou nichos específicos: esse movimento se dá costumeiramente com a compra de alguma empresa de software especialista muito boa, cujo DNA inovador acaba normalmente esmagado e triturado pela empresa compradora, virando rapidamente “mais do mesmo”. Eu já escrevi há tempos um artigo baseado em pesquisas brasileiras que provam que promover a inovação comprando empresas pequenas e inovadoras não funciona.
Opção 3 – Aumentar o “share of wallet”, vendendo projetos de melhorias, customizações, upgrades de versão e produtos complementares dentro dos clientes existentes - esse é o típico (e correto) jogo do Main Street.
Opção 4 – Ganhar clientes dos concorrentes, que seria o mais lógico, só que não é fácil. Trocar um ERP sempre é algo muito traumático e difícil, e é uma tarefa complicada convencer o cliente, que sempre dá muitas “segundas chances” ao antigo fornecedor.
Opção 5 – Vender para empresas menores, já que o mercado das maiores está saturado.
O problema de verdade mora no 4 e 5, pois são a escolha preferida do momento. Para tomar clientes de ERPs concorrente e vender para empresas cada vez menores vale tudo, até dedo no olho e puxar cabelo. É fácil perceber isso quando ouvimos constantemente dos próprios vendedores que “o mercado está muito prostituído”. Engraçado ouvir isso de quem, no final das contas, promove a prostituição. Então vamos listar aqui quais são os principais truques que eles usam para vender o lindo sonho ao cliente, que depois vira pesadelo:
- Vender reputação ao invés de solução: truque muito fácil de identificar. O vendedor foca muito mais em quão grande e sólida é a sua empresa do que na solução. A ideia é passar a sensação de que não seria possível tanta gente estar errada ao mesmo tempo, e que, portanto, você deve confiar de olho fechado. É uma forma bem convincente de afastar a análise do produto, que está envelhecido e fora de sintonia com o usuário moderno. Este truque é tão comum que todos os outros abaixo costumam vir acompanhados dele.
- O sistema faz tudo, mas não pode ser mostrado agora por algum motivo. Combinado com o truque acima, o vendedor faz parecer uma “ofensa” o cliente querer ver a solução funcionando plenamente antes de comprar. “Uma empresa líder como a nossa não faz esse tipo de coisa pois temos responsabilidade”... (sic)
- Qual a sua verba para gastar com o sistema? Nunca, jamais, responda a essa questão. Se você responder, o que vai acontecer é que você vai receber uma proposta com o preço que você pode pagar. Qual o problema aqui? O mesmo do truque abaixo:
- Batendo o preço da concorrência: se um concorrente passa um preço 50% menor, magicamente aparece uma nova proposta enquadrando a sua empresa em algum tipo de programa de alto desempenho de implantação, também conhecido nas salas de reunião comercial dos fornecedores de ERP como “projeto cabecinha”. A mágica funciona assim: reduz-se a quantidade de usuários para diminuir a licença, dá-se um desconto e cortam-se as horas de implantação insanamente. Como se faz esse corte? Cortando, simples assim. O que levava 100 horas, muda-se para 50 ou menos na nova proposta, sem medo de ser feliz, independente da real necessidade. Mas perceba sempre a presença de um parágrafo mais ou menos assim, perdido no meio do longo texto que ninguém lê: “As quantidades de horas nesta proposta baseiam-se em informações recebidas do cliente até o momento, sendo apenas uma estimativa”. Isso juridicamente abre espaço para o fornecedor de ERP aparecer com “n” novas propostas adicionais no meio do caminho, causando a conhecida situação de custo múltiplas vezes maior do que a proposta inicial.
Golpe baixo, certo? Mas não acabou. Quando eu digo que tudo está errado no processo de venda dos velhos ERPs, não é exagero, é tudo mesmo - até a suposta vítima desse estelionato. Vamos entender agora esse inesperado culpado: o cliente. O cliente normalmente comete estes erros fatais:
- Delegar a escolha (ou o veto) ao “gerente de TI”, afinal ele entende de sistemas, certo? Não poderia estar mais errado. O gerente ou diretor de TI é um cargo em plena decadência no mundo desde que começaram a surgir sistemas mais inteligentes e a infraestrutura vem migrando para a nuvem. Acredite em mim, a única coisa que ele quer é colocar no currículo dele que fez a implantação de um sistema famoso para facilitar o seu passe no mercado. Ah, sem falar que esse profissional é visto pelos vendedores dessas velhas empresas de ERP como alguém facilmente subornável, o que é verdade. O suborno vem de forma sutil, tipo: “acho que para gerenciar esse projeto complexo você vai precisar de um notebook novo”, ou ainda “você merecerá umas ótimas férias em Miami depois de passar por esse estressante processo de compra de ERP” – frases que já me foram confidenciadas em diversas variações.
- Enganei o fornecedor, hahaha! Você como empresário comprador do software acha que dobrou um vendedor de uma marca famosa ao fazê-lo colocar no papel que eles implantam na sua empresa por um preço impossível, e que a lei estará a seu favor. Novamente, não poderia estar mais errado. Esses fornecedores de ERP antiquados possuem mais gente apenas no departamento jurídico do que você em toda a sua empresa. Só como exemplo, uma das empresas líderes no mercado brasileiro possui, na justiça de todo o país, milhares de processos movidos por clientes, os quais ela vence na maioria dos casos. Desculpe, você está lidando com profissionais preparados no assunto e não vai se dar bem por esse caminho.
- Contratar uma consultoria para avaliar um software: é piada pronta. Você acha que essas consultorias não ganham comissão do fabricante de ERP? Você realmente acha que uma consultoria experiente de seleção de software (que conhece a fundo a maioria dos fornecedores) é isenta e não saberia, em cinco minutos, se um software desses atende ou não sua empresa? Conta outra.
- Customizar o software para suas necessidades: essa é a pior ideia que você poderia ter. Se o software não atende, não atende. E mais do que isso: se o processo definido pelo sistema é muito diferente de como acontece na sua empresa, há uma enorme chance de você estar trabalhando errado, ou o fornecedor ter ambos os pés no passado. Erro fatal em qualquer caso.
Então, como se prevenir de tudo isso? Aqui vão algumas dicas bem simples. Primeiro, não adianta nada pedir referências. Sempre, entre milhares de insatisfeitos, existirá um cliente satisfeito ou disposto a dar uma boa referência. Ao invés disso, faça o seguinte:
- Acesse o reclame aqui e faça uma busca. Podem existir reclamações injustas, mas normalmente onde há fumaça há fogo, principalmente quando a quantidade é grande.
- Acesse os sites dos tribunais de primeira e segunda instâncias e faça uma busca de processos do potencial fornecedor. Se não tiver intimidade com isso, peça ao seu advogado – garanto que você vai se surpreender com o resultado.
- Prefira produtos em nuvem que normalmente oferecem um período de teste gratuito. Use e abuse disso para testar ao máximo não apenas o produto, mas principalmente o suporte.
- Quem confia no produto e no serviço prestado não precisa amarrar você em um contrato anual. Afinal, se o produto e o suporte são sempre bons, por que você mudaria? Então desconfie de contratos com amarração anual com cláusulas de multa.
- Fuja de ofertas de customizações. Sei que já falei sobre o quão ruim isso é, mas tem outra coisa: se o fornecedor oferece customizações no sistema padrão, é sinal que a empresa está mais voltada a projetos de consultoria do que a produtos prontos. Aperte o “Eject”.
Comments